Perdendo a sanidade com Eldritch Horror

 Esta análise foi publicada originalmente por mim no site Redomanet (atual Ludopedia) em 2013. Esta é uma versão revisada do texto. 


 Eldritich Horror é um jogo cooperativo de terror criado pelos designers Corey Konieczka e Nikki Valens e que foi lançado no final de 2013 pela Fantasy Flight Games. O jogo é ambientado no universo Lovecraftiano dos Mitos de Cthulhu, e pode ser considerado um derivado do jogo Arkham Horror (segunda edição), outro cooperativo da Fantasy Flight que segue a mesma temática. É bom deixar claro que nunca joguei Arkham Horror, mas sempre tive curiosidade para conhecer.  Após ler algumas análises do Eldritch Horror, unânimes em dizer que o jogo era basicamente uma versão “melhorada” do Arkham e com duração menor,  tomei coragem e comprei.  Uma semana depois que importei o jogo, a editora brasileira Galápagos Jogos anunciou que estaria trazendo o Eldritch para o país em 2014 (timing perfeito, não?) e seu apelo aumentou tremendamente para os gamers brasileiros. 

Como funciona o jogo?

Tabuleiro Eldritch Horror 

Em Eldritch Horror os jogadores selecionam um "grande antigo" para ser o monstrão “big boss” da partida e cada um escolhe um investigador, um deles é definido como o líder e os turnos começam por ele e daí sequencialmente para os demais jogadores em sentido horário. Um turno é divido em três fases: Ações,  Encontros e Mythos. Na primeira fase, cada investigador realiza até duas ações, na fase seguinte cada um deve participar de um encontro no espaço onde se encontra no tabuleiro e na última fase é comprada uma carta do deck Mythos, que basicamente acelera a chegada do grande antigo ao mundo, causando todo tipo de sofrimento aos investigadores. Se ao final da fase de Mythos os investigadores tiverem desvendado coletivamente três mistérios sobre o grande monstrão, eles vencem o jogo. Agora se o marcador na trilha de destruição (doom track) chegar a zero, o monstro acorda e devora a Terra, ou então sai pra passear um pouco pelo planeta antes de devorá-lo, tornando a tarefa de salvar a humanidade uma causa praticamente perdida para os investigadores. Quem já jogou algum outro jogo de tabuleiro do universo Cthulhu Mythos, como Elder Sign ou o próprio Arkham Horror deve estar familiarizado com a maioria dos elementos presentes em Eldritch Horror. Mas o que os diferencia então? O escopo e as mecânicas utilizadas.

 Em Eldritch Horror os investigadores enfrentam o terror dos grandes antigos e seus lacaios em escala global, o tabuleiro representa o mapa do mundo com várias localidades marcadas e interligadas por trilhos de trem, rotas marítimas ou obscuras trilhas por terra, as localidades podem ser cidades, áreas selvagens ou zonas marítimas, algumas delas tem nome mas a maioria é identificada apenas por um número. As localidades nomeadas correspondem a cidades onde se abrirão portais para outros mundos e por onde os lacaios do grande antigo invadirão nossa realidade. Outras localidades nomeadas são áreas selvagens onde os investigadores poderão realizar expedições em busca de conhecimento sobre o terror que ameaça o planeta. As demais localidades numeradas não tem nenhuma função especial , mas os jogadores poderão encontrar pistas, resolver rumores e até combater monstros nestes locais em algumas situações.

Os investigadores serão testados a todo o momento no jogo, para isso eles têm atributos que definem seu conhecimento, força física, força mental, perspicácia e influência, além dos pontos de vida e de sanidade. Quem já leu “The Call of Cthulhu” sabe que quanto mais conhecimento se adquire sobre o horror dos grandes antigos, mais abalado mentalmente o indivíduo fica, logo, se em qualquer momento a sanidade ou os pontos de vida de um investigador se extinguirem, ele está fora. Em uma situação como essa o jogador deve escolher outro investigador para prosseguir no jogo.
Uma vez que se entende como é feito um teste de atributo, o jogador já sabe como enfrentar 100% das situações de jogo com seu investigador, seja um combate contra monstros, ativação de alguma magia, fechamento de um portal ou qualquer outro tipo de desafio, tudo se resume a um teste ou conjunto de testes de atributos. Isso com certeza é uma simplificação interessante e que funciona. Mas como se testa um atributo? É simples, cada atributo é identificado na ficha do investigador por um número e este número determina a quantidade de dados D6 que serão jogados para testá-lo. Qualquer resultado 5 ou 6 faz você passar no teste, e é isso.

É possível incrementar o nível dos atributos dos investigadores adquirindo itens que dão bônus temporários, ou se você der sorte em um encontro que te dê um aumento permanente de atributo como prêmio. Mas prêmio nesse jogo é algo raro! Abundante mesmo é o sofrimento! 

As Fases

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Fase de Ações

Durante a fase de ações os jogadores podem:

  • Comprar uma passagem de trem ou navio
  • Viajar para um local adjacente (interligado por uma rota marítima, uma trilha ou uma ferrovia). Nesta ação é possível gastar até duas passagens e viajar para mais longe.
  • Descansar, recuperando 1 ponto de vida e 1 de sanidade
  • Tentar a sorte testando influência para obter itens disponíveis na reserva. Sempre haverão alguns itens disponíveis nesta área do tabuleiro chamada reserva, um investigador pode gastar uma de suas ações para testar influência e a quantidade de sucessos obtidos neste teste determinará o valor máximo de item que ele é capaz de obter. Exemplo:  um investigador tem influência 3, joga 3 dados e o resultado é 1, 5 e 6. Como ele obteve dois sucessos então pode obter um item da reserva cujo valor seja menor ou igual a 2.
  • Trocar itens com outro investigador que estiver no mesmo espaço
  • Realizar uma ação descrita em um componente do jogo, como por exemplo: uma ação especial do investigador escrita na ficha de personagem ou uma ação escrita numa carta de item. Quanto mais itens o investigador tiver, mais ações vão ficando disponíveis para ele ao longo do jogo.

Obs.: Não é possível repetir ações no mesmo turno.

Fase de Encontros

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Nesta fase os investigadores são obrigados a ter um encontro com algo em seu espaço no tabuleiro. Se existirem monstros nesse espaço ele é obrigado a ter um encontro de combate com cada um deles, se o investigador derrotar todos os monstros daquele espaço ele pode ter um outro encontro adicional. Além dos encontros de combate existem também os encontros de localidade, encontros de expedição, encontros de outro mundo, encontros de pesquisa, encontros de rumor, encontros com investigadores derrotados e outros encontros especiais. Para a maioria dos tipos de encontro existe um deck de cartas específico de onde se compra a carta que determinará o que acontece. Para os encontros de localidade por exemplo, existem quatro decks diferentes, três deles exclusivos para as cidades nomeadas e destacadas no mapa e um outro genérico, que pode ser usado para qualquer espaço do mapa. Se não existir token de pista, token de rumor, token de portal, token de expedição ou um investigador derrotado no espaço do investigador, resta a ele ter um encontro de localidade, daí ele compra uma carta do deck apropriado e lê o que acontece. 

Qualquer tipo de encontro se resolve da mesma forma, você precisa ler o texto da carta e no meio desse texto serão indicados um ou mais testes de atributo que determinarão o resultado. Alguns encontros são mais simples, com apenas um teste e outros são mais complexos, com desdobramentos diferentes dependendo do resultado do primeiro teste. Obviamente os mais importantes são os mais complexos. Fechar um portal é uma das coisas mais importantes do jogo, e os encontros de outro mundo são os únicos que permitem isso, este é um encontro do tipo complexo e você geralmente tem que passar por dois testes diferentes para conseguir fechá-los.

Os encontros de combate também são, na maioria das vezes, dois testes. Primeiro um teste de força mental e depois um de força física (sempre nessa ordem). Se você falhar no teste mental, você perde sanidade e mesmo assim tem que encarar o teste de força física, se falhar perde pontos de vida. O teste de força física é a forma de você derrotar o monstro, para isso você precisa ter um número de sucessos maior ou igual á resistência física do monstro. 

Os encontros de pesquisa permitem que você obtenha pistas, que é uma “commodity” muito valiosa no jogo. Você precisará de pistas para concluir os 3 mistérios e vencer, mas só é possível obter pistas em espaços que tenham o token de pista e estes tokens aparecem aleatoriamente no mapa, determinados pelas cartas Mythos. Aceita uma dica? Pois então nunca permaneça por muito tempo com investigadores sem pistas na mão, isto só trará sofrimento e desgraça para o grupo!

Outro encontro interessante é aquele com um investigador derrotado. Neste jogo, quando um investigador bate as botas ou enlouquece, seu marcador permanece no local, e um outro investigador pode ir até lá e iniciar um encontro deste tipo. Atrás da ficha de cada investigador existem dois textos diferentes, um para o caso do investigador ser derrotado por insanidade e outro por pontos de vida. É só ler o texto apropriado, realizar os testes e recuperar os itens que o moribundo deixou.

Fase Mythos

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É nesta fase que você vai roer os dedos e se deseperar mesmo antes de comprar a carta do topo do deck. Existem 3 tipos de cartas no deck mythos: cartas de rumor (terríveis!), cartas que abrem portais e disparam o efeito “reckoning” (péssimas!) e cartas que evocam monstros e espalham pistas (muito ruins!). Ou seja: você vai se dar mal. Cada grande antigo tem uma composição específica para o seu deck Mythos, que regula a quantidade de cada um destes tipos de carta e o momento do jogo onde elas tendem a aparecer. Além dos três tipos diferentes, ainda há 3 subníveis de dificuldade: difícil, médio e fácil, se você calhar de pegar muitas cartas de nível difícil no seu deck Mythos já era, o jogo que já é difícil se torna praticamente impossível. Para não sofrer tanto você pode aliviar a dificuldade retirando as cartas difíceis do deck, ou se for louco, pode retirar as fáceis.

Você vai lá e compra a famigerada carta do deck Mythos, olha logo no topo as catástrofes que ela trás e executa estas catástrofes na ordem exata em que aparecem na carta. Se for uma carta de rumor ela geralmente insere uma nova regra no jogo, e geralmente é uma espécie de bomba relógio, se você não se livrar dela rápido ela irá acabar com o jogo ou torná-lo muito mais díficil. É o pior tipo de carta que você pode comprar do deck Mythos, por isso só existem duas delas no deck. Se for qualquer outro tipo de carta uma coisa é garantida: ela irá mandar você avançar o presságio (omen track). Esse negócio é tipo um relógio contendo 3 símbolos diferentes que representam uma espécie de conjuntura astrológica bizarra. Cada portal que se abre no tabuleiro está atrelado a um destes símbolos e toda vez que você avança uma posição neste relógio e aponta para um novo presságio, você de quebra tem que avançar o token da trilha de destruição, tantas posições quantos forem os portais abertos no tabuleiro que estão ligados a este presságio. Ufa! Espero que tenha dado pra entender! Se não deu, aí vai a versão resumida: o fim está próximo! Além de avançar o presságio, a carta ainda terá mais dois efeitos e um evento para disparar. Os efeitos restantes podem ser: soltar monstros no mundo através dos portais ligados ao presságio corrente, colocar um novo token de pista no mapa, abrir um novo portal ou disparar o efeito “reckoning”. Este último é representado por um símbolo que existe em diversos componentes do jogo como monstros, cartas de rumor, itens, condições e até mesmo na ficha do grande antigo. Quando este efeito acontece, você tem que ir a cada um dos componentes que tem este símbolo e fazer o que diz lá (seguindo uma ordem específica determinada nas regras do jogo), e é sempre coisa ruim, não se iluda! Este efeito nada mais é do que um gatilho para os mais variados efeitos que vão do ruim ao catastrófico.
Então é basicamente isso, passada a fase Mythos os jogadores voltam para fase de ações e assim sucessivamente até o mundo ser devorado no final.

Antes de ir para a minha avaliação do jogo, existe uma mecânica muito interessante que vale mencionar:

As cartas de dupla face

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As cartas de magias e condições tem instruções dos dois lados e são utilizadas de uma forma muito interessante. As magias você ganha como prêmio em encontros bem sucedidos e podem ser utilizadas para te ajudar no combate ao mal e as condições são cartas que afetam o investigador enquanto estiverem na mesa. Elas são utilizadas para representar doenças, distúrbios mentais, maldições, bênçãos, pactos e etc. Geralmente a parte da frente da carta trás uma regra que exige um teste de atributo, dependendo do resultado deste teste, você terá que virar a carta para ver o que vai acontecer a seguir. Quando você faz um pacto com alguém,  por exemplo, se você não cumprir sua parte ou não conseguir persuadir o seu cobrador, algo de bem ruim poderá te acontecer, mas você nunca saberá o que é, já que existem várias cartas que são iguais pela frente mas tem resultados diferentes atrás! Essa mecânica é muito legal e te mantém sempre tenso sem saber o que de pior está por vir. Pode ser até que você se livre da condição antes que ela venha te pegar de jeito!

Já deu pra ver que nada é fácil nesse jogo, depois de penar para conseguir uma magia, você ainda precisará fazer um teste sempre que quiser usá-la, se o teste falhar você poderá, além de não lançar a magia, se ferir, ganhar uma condição, etc. Em contrapartida, se o número de sucessos que você conseguir no teste for grande, a magia poderá ter um efeito muito melhor que o efeito básico que é descrito na frente da carta, todas estas demais regras aparecem descritas no verso.

Minhas Impressões

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 Do ponto de vista de valores de produção, Eldritch Horror é excelente. Padrão Fantasy Flight. Os componentes são de qualidade excelente, tabuleiro lindo, design gráfico primoroso. Não usa miniaturas mas os marcadores de papelão montados em bases de plástico, que representam os investigadores, funcionam muito bem. A única coisa que a FFG pecou neste quesito foi na quantidade de dados, quatro é insuficiente e você precisará ficar jogando os mesmos dados várias vezes nos inúmeros testes de atributo presentes no jogo. Se ainda fossem dados customizados caros, eu ainda entenderia, mas neste caso são simples D6 padrão! Sete dados estaria de bom tamanho.

Com relação ao tema, pode-se dizer que o jogo é bem fiel à obra de Lovecraft. Tal como naquela, o desespero, a opressão e a sensação de impotência diante do vasto poder dos alienígenas milenares está claramente presente no jogo. Você pode até aplicar várias estratégias e seguir um bom planejamento, mas no final só vai dar certo se você tiver uma boa ajuda da sorte. O jogo oferece sempre muitas opções aos jogadores e isto ajuda a disfarçar o fator sorte, que é altíssimo, e os mecanismos que o jogo oferece para mitigá-lo nunca são suficientes para garantir o sucesso de qualquer plano. Dito isto, jogadores obsessivos por controle devem passar longe, pois haverá frustração a todo o momento e não haverá nada que se possa fazer pra evitar. É nítida a impressão de que existem forças além da sua compreensão atuando no tabuleiro e elas querem que você fracasse!

Eldritch Horror é um jogo para o jogador masoquista, é para aquele tipo de jogador que acha graça em ver um investigador com vida completa morrer abruptamente por não ter passado em um teste de conhecimento. É para o cara que se diverte quando compra uma carta Mythos que manda devolver para o deck um mistério que o grupo sofreu para desvendar, só porque ninguém do grupo tinha um token de pista para descartar naquele exato momento.  Este é um jogo para um cara como eu, que não descansou enquanto não conseguiu vencer uma partida! Na quinta tentativa fomos vitoriosos e desde então os grandes antigos estão bem aprisionados dentro da caixa!

O jogo é difícil e isso é bom sinal em se tratando de um cooperativo. Se você optar por jogar solo, não jogue com apenas um investigador, porque aí ele fica impossível. 

Deixando de lado o fato de que você será manipulado o tempo todo pelos grandes antigos e seu imenso poder de afetar a sua sorte, as mecânicas utilizadas neste jogo são tão engenhosas e bem inter-relacionadas que cumprem perfeitamente o papel de te enganar e fazer você pensar que perdeu o jogo por erros de estratégia e não por falta de sorte. O jogo te obriga a ler os pedaços da história nas cartas porque os testes pelos quais você precisa passar estão lá no meio, então você vai vivendo a situação e acreditando. É claro que poderia ser melhor, a história poderia ser mais coerente em determinados momentos e não somente uma colcha de retalhos de pequenas passagens genéricas aleatórias de terror, sem nenhuma conexão entre si. Um exemplo irritante: quando você tenta fechar um portal e não consegue, aquela carta de encontro de outro mundo que te ferrou é imediatamente descartada e, quando você for tentar fechar de novo o mesmo portal, terá que comprar outra carta, que provavelmente fará referência a um mundo diferente, e você será novamente pego de surpresa. O jogo não te dá nem chance de se preparar melhor para o teste, pois este mudará a cada tentativa e você nunca terá a mínima idéia do que vai enfrentar.

O tempo de duração das partidas é aceitável. Gira em torno de duas a três horas, com 2 ou 3 jogadores (não imagino como deve ser um jogo com 8 pessoas, eu passaria longe!).  Não dá pra devorar o mundo em menos tempo do que isso, aí já seria fácil demais pra esses grandes antigos!

Dito tudo isso, Eldritch Horror é aquele jogo pra você juntar uns amigos e reservar 3 horas do dia para serem coletivamente humilhados por entidades milenares alienígenas super-poderosas e para rirem do destino trágico dos seus avatares que fatalmente irão morrer, e por causa de sua fraqueza a humanidade inteira sucumbirá por tabela ou será escravizada em um reino de escuridão eterna. Como dizem por aí, não é o destino da viagem o mais importante, mas a viagem em si, e pode ter certeza que ela será repleta de momentos tensos, alegres, desesperadores, frustrantes, esperançosos, frustrantes de novo e por aí vai. Se isso não é sinônimo de diversão, o que mais seria?


Obs. 1: Várias expansões já foram lançadas para o jogo. Não tenho experiência com nenhuma delas mas sei que acrescentam muita coisa ao jogo. Se você gosta do gênero, vale a pena dar uma pesquisada no que foi lançado no Brasil pela Galápagos Jogos.

Obs. 2: Em 2018 a Fantasy Flight lançou a terceira edição do Arkham Horror, que também recebeu boas avaliações e utiliza elementos que deram certo no Eldritch Horror. O jogo também foi lançado no Brasil pela Galápagos em junho de 2019.

Ficha do Jogo: Eldritch Horror

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